ILCH - Universidade do Minho
Nov. 2009
"Robert Nozick nasceu em Brooklyn, Nova Iorque, em 1938, numa família judaica de origem russa. Desde a adolescência que se interessou pela filosofia — na qual se iniciou através da leitura da República de Platão —, vindo mais tarde a licenciar-se neste domínio, no Columbia College. Embora não tenha considerado a sua licenciatura particularmente interessante, ela permitiu-lhe prosseguir os seus estudos de pós-graduação, na Princeton University, onde se doutorou em 1963, com uma tese sobre “A Teoria Normativa da Escolha Individual”. De Princeton passou para Harvard, seguidamente para a Rockefeller University e, em 1969, de novo para Harvard. Foi aqui que fez grande parte da sua carreira, publicou vários livros e se tornou “University Professor”, a posição académica mais elitista e cobiçada nesta universidade. Viria a falecer algo precocemente, de doença prolongada, em 2002.
Nozick não foi somente um filósofo político. Os seus interesses eram extremamente variados e iam desde a filosofia das ciências à metafísica, ou da teoria da racionalidade à filosofia existencial. O leitor pode constatar isso mesmo mediante a bibliografia escolhida do autor inserida no final desta Introdução. Embora percorrendo muitos aspectos diferentes do pensamento filosófico, tanto no seu ensino como nas suas publicações, Nozick foi muito influenciado pela chamada filosofia analítica, o que se traduz numa preocupação grande com a análise semântica e o rigor lógico da argumentação.
Mas a obra que consagrou Nozick como pensador de relevo foi precisamente aquela que é agora traduzida para português: Anarquia, Estado e Utopia, de 1974. Esta é a sua grande obra de filosofia política e, depois dela, o autor não regressou à reflexão política senão de forma episódica e passageira. O livro de Nozick é uma longa e cuidadosa reacção à obra que, apenas três anos antes, tinha revolucionado a filosofia política contemporânea: Uma Teoria da Justiça, escrita por John Rawls, seu colega mais velho no Departamento de Filosofia de Harvard. A esse propósito, diz Nozick:
Uma Teoria da Justiça é uma obra de filosofia política e moral poderosa, profunda, subtil, de grande fôlego, sistemática, à qual nada se pode comparar desde os escritos de John Stuart Mill, quando muito. É uma fonte de ideias luminosas, integradas num todo cativante. Os filósofos da política hoje têm ou de trabalhar no seio da teoria de Rawls ou de explicar por que não o fazem. (Anarquia, Estado e Utopia, Cap. 7, página 228)
Ora, o intento de Nozick consiste precisamente em explicar por que razão não pretende trabalhar no seio da teoria rawlsiana e prefere optar por um paradigma alternativo.
Rawls tinha apresentado uma defesa neocontratualista e altamente sofisticada da justiça social, implicando uma visão alargada da igualdade de oportunidades e da distribuição do rendimento e da riqueza. Nozick postula uma alternativa assente em direitos individuais de propriedade que funcionam como um entrave moral a todas as formas de distributivismo. Se o pensamento de Rawls pode ser lido como uma justificação do estado social, o de Nozick consiste numa defesa explícita de um estado mínimo que não procura corrigir as desigualdades sociais. Assim, entre Uma Teoria da Justiça de Rawls e Anarquia, Estado e Utopia de Nozick, ficam estabelecidos os fundamentos do debate entre liberais-igualitários (ou social-democratas), por um lado, e libertaristas (ou neoliberais), por outro. Como é bom de ver, este é um debate cujos fundamentos filosóficos foram estabelecidos há trinta e cinco anos, mas cuja tradução ideológica e consequências políticas são nossas contemporâneas.
O distanciamento crítico de Nozick em relação à teoria de Rawls não surge do nada. Nozick sempre fora seduzido pela tradição libertarista americana, especialmente através da obra e do pensamento de Ayn Rand. Esta autora fazia assentar a defesa do libertarismo num egoísmo ético de base biológica. Segundo Rand, é o próprio “direito à vida” dos organismos racionais que leva a uma ideia de liberdade como não interferência de carácter absoluto e, daí, ao estado mínimo como aquele tipo de estado que melhor assegura essa liberdade de carácter negativo. Mantendo embora o ideário libertarista de Rand, Nozick considera que o seu biologismo não fornece uma base sólida para a defesa do estado mínimo e que este necessita de uma justificação diferenciada.
***
A primeira questão que um autor libertário como Nozick tem de enfrentar é precisamente a de saber se o estado se justifica de todo, ou se seria preferível a sua ausência, isto é, a anarquia no sentido político, não etimológico. A primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia trata precisamente deste problema. Embora sem antecipar toda a riqueza da argumentação nozickiana, importa aqui esboçar o essencial do argumento que conduz à preferência pelo estado mínimo em relação à anarquia.
Nozick propõe-nos uma experiência mental que consiste em imaginar o estado de natureza de Locke, no qual não existe ainda estado civil mas apenas indivíduos dotados de direitos morais pré-políticos. Este ponto de partida é absolutamente fulcral na economia do pensamento nozickiano e não seria possível entender a sua obra política sem nele atentar. Como escreve Nozick logo a abrir o Prefácio do seu livro,
“Os indivíduos têm direitos e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo lhes pode fazer (sem violar os seus direitos). Estes direitos são de tal maneira fortes e de grande alcance que levantam a questão do que o estado e os seus mandatários podem fazer, se é que podem fazer alguma coisa.”
Os direitos pré-políticos em Nozick devem ser vistos, na linha de Locke, como uma decorrência do direito à propriedade de si mesmo. Cada indivíduo é dono de si próprio — e não propriedade de outrem — e isso implica o direito à vida, à liberdade de fazer o que quiser consigo mesmo, com o seu corpo e os seus talentos pessoais, e ainda o direito aos haveres ou à propriedade no sentido mais estrito, na medida em que ela esteja de acordo com a justiça (voltarei a esta questão mais adiante). Se partirmos, então, de um estado de natureza com indivíduos dotados de direitos concebidos em termos de autopropriedade, será que em algum momento será necessário o estado mínimo?
Para responder a esta questão, Nozick parte da constatação, já feita por Locke, de que o estado de natureza encerra em si uma considerável insegurança. Os indivíduos dotados de direitos morais não têm qualquer entidade à qual recorrer caso esses direitos sejam violados. Por isso só podem fazer justiça pelas próprias mãos ou, na linguagem lockiana, são os próprios a ter o direito de executar a lei da natureza que protege a propriedade individual. Será então necessário ultrapassar a instabilidade que daqui decorre. A solução encontrada por Locke era a celebração de um contrato social que permitia legitimar as instituições do estado civil. Nozick segue uma estratégia algo diferente. Prefere recorrer ao contrafactual de uma evolução hipotética a partir do estado de natureza e sem recurso ao artifício do contrato, mas tendo em conta o valor moral dos direitos individuais. Por outras palavras, pensa que, partindo do estado de natureza formado por indivíduos proprietários de si mesmos, haveria um deslizamento natural para algo diferente e que, através de um mecanismo de “mão invisível”, daria lugar ao estado civil. Vejamos como.
Nozick imagina que os indivíduos começam por organizar-se em associações protectivas com vista a garantir a sua própria segurança. Esta é uma primeira forma concertada de defesa dos direitos individuais. Mas, como os membros das associações protectivas não podem dedicar-se a tempo inteiro a essa protecção, a tendência é para a divisão do trabalho e a profissionalização destas associações. Ou seja, as associações protectivas iniciais dão origem a empresas encarregadas de proteger os seus clientes. No entanto, não está ainda ultrapassada a instabilidade do estado de natureza. As associações protectivas transformadas em empresas entram em concorrência e conflito. A lógica do mercado da protecção leva então ao desaparecimento das mais fracas e ao triunfo das mais fortes. Em última instância, esta lógica conduz ao surgimento de uma associação protectiva profissionalizada dominante. Para melhor proteger os seus clientes, esta associação dominante anuncia publicamente que punirá todos aqueles que atentarem contra os direitos dos seus clientes. Desta forma, a agência dominante assegura em termos práticos, na famosa expressão de Max Weber, o “monopólio da violência autorizada”. Nesta fase, estamos já na presença do estado civil ou, melhor dizendo, daquilo que Nozick intitula “estado ultramínimo”.
Porém, se a agência protectiva dominante coloca entraves à acção dos independentes, i.e., dos não clientes, tem o dever moral de os compensar. Essa compensação surge mediante o fornecimento de serviços de protecção a todos os indivíduos dentro de uma determinada área geográfica. Este último aspecto constitui a segunda parte da definição weberiana do estado. Assim, quando todos os que se encontram dentro de um determinado território, delimitado por fronteiras, estão protegidos por uma entidade que detêm o monopólio da violência autorizada, estamos finalmente na presença do estado mínimo. Este pode garantir satisfatoriamente os direitos individuais ao proteger todos os indivíduos contra o uso indevido da força, o roubo, a fraude e o incumprimento dos contratos. A instabilidade inicial do estado de natureza está resolvida, com vantagem para a segurança dos direitos dos indivíduos.
A experiência mental aqui descrita de uma forma muito sucinta permite estabelecer que um estado mínimo é preferível à anarquia, na medida em que protege melhor a autopropriedade individual. No entanto, a maior parte das filosofias políticas contemporâneas — e, em especial, a rawlsiana — servem para justificar um estado com funções alargadas, em nome da justiça social ou distributiva. Por isso Nozick dedica a segunda parte de Anarquia, Estado e Utopia a refutar a necessidade de um estado mais extenso do que um estado mínimo mediante a defesa de uma teoria da justiça de cariz libertarista e alternativa face ao distributivismo rawlsiano. Nozick designa a sua própria visão como “teoria da titularidade”.
A teoria da titularidade diz respeito às posses, ou haveres, dos indivíduos, isto é, à propriedade no sentido estrito e mais comum. Coloca-se então a questão: em que circunstâncias têm os indivíduos direito aos seus haveres (ou não)? Nozick considera que a teoria da titularidade responde a esta questão abarcando três aspectos diferentes: a justiça na aquisição, a justiça na transferência e, finalmente, a rectificação da injustiça. Vamos agora percorrer brevemente cada um destes três aspectos.
Qualquer pessoa tem direito a qualquer haver alvo de uma aquisição inicial desde que, por essa aquisição, não tenha infringido os direitos individuais de outrem. Isso implica certamente que a aquisição não pode ser conseguida através do uso da força ou do roubo, por exemplo. Mas a legitimação da aquisição está também dependente da chamada “restrição lockiana”. Esta implica que aquele que adquire — por exemplo, um terreno que antes não pertencia a alguém — deixe o mesmo e suficientemente bom para os outros. No entanto, a formulação de Locke, feita num tempo em que o mundo por descobrir parecia inesgotável e não faltava terra para todos, é actualizada por Nozick de um modo peculiar.
No pensamento nozickiano, a restrição lockiana passa a significar que qualquer aquisição é moralmente permissível desde que não prejudique seja quem for. Esta interpretação da “restrição” é extremamente plástica e permite justificar, por exemplo, a aquisição de recursos naturais até agora inexplorados, ou, para dar outro exemplo particularmente significativo, a apropriação de patentes médicas por tempo indefinido (para além daquilo que permite o próprio direito internacional). Com efeito, quem acede a um novo recurso a que ninguém conseguia antes aceder, ou cria uma patente que ninguém antes tinha criado, não está a prejudicar alguém, não está a deixar alguém pior, e por isso tem o direito pleno ao seu haver.
Porém, a maior parte dos haveres dos indivíduos não provém de aquisições iniciais mas antes de processos de transferência (contratos de compra e venda, doações, heranças, etc.). Mais uma vez, os indivíduos têm direito aos haveres que resultam de transferências nas quais não houve violação de direitos individuais nem desrespeito da restrição lockiana. Ou seja, desde que essas transferências tenham sido conscientes e voluntárias e não prejudiquem alguém. Esta ideia tem largo alcance, na medida em que as enormes desigualdades nos haveres dos indivíduos e famílias resultam de uma multiplicidade de transferências ao longo do tempo das suas vidas, ou mesmo ao longo das gerações. Se esses processos de transferência foram justos, então nada há a objectar às disparidades sociais que daí resultam.
O terceiro aspecto da teoria da titularidade consiste na necessidade de estabelecer algum princípio de rectificação sempre que os haveres de alguém não resultaram de aplicações sucessivas da justiça na aquisição e da justiça na transferência. Ou seja, se se verificar, por exemplo, que os haveres de alguém resultaram de roubos ou aquisições ilegítimas no passado, então será necessário rectificar. Este princípio aplica-se individualmente, mas também em termos mais alargados. Por exemplo, Nozick pensa que os índios americanos deviam ser devidamente indemnizados pelas terras que lhes foram roubadas pelos colonos brancos. Outro exemplo, relativamente recente, de aplicação rectificativa poderia ser a devolução aos judeus do ouro roubado pelos nazis.
Os três aspectos da teoria da titularidade apontam para a principal característica distintiva desta teoria da justiça dos haveres: o seu cariz histórico. Aquilo que cada indivíduo detém a justo título depende do que aconteceu no passado e ao longo do tempo. Ou seja, se aquilo que os indivíduos possuem decorre da justiça na aquisição e nas transferências, então é efectivamente justo. Se, por outro lado, se detecta no passado alguma aquisição ou transferência injusta, ela deve ser rectificada. Mas Nozick resiste à consequência mais radical do seu pensamento que consistiria em sustentar que, face ao desconhecimento do passado, sobretudo remoto, seria mais justo aplicar um princípio rectificador geral — mediante, por exemplo, uma distribuição igualitária dos haveres — e começar tudo de novo. Do meu ponto de vista, esta conclusão é consequente com o próprio pensamento de Nozick. Mas ele sabe bem que a suspeição genérica sobre o passado e o respectivo remédio rectificativo equivaleria a uma espécie de socialismo, ainda que temporário, e considera claramente excessivo “introduzir o socialismo como castigo pelos nossos pecados” (cf. final do capítulo 7).
Uma caracterização mais esmiuçada da teoria da titularidade teria de levar à sua contraposição face a outras teorias a que estamos mais habituados e que, contrariamente à teoria nozickiana, têm carácter teleológico ou estabelecem padrões distributivos que caberia ao estado introduzir na sociedade. A teoria teleológica standard é o utilitarismo. O seu objectivo é a maximização do bem-estar social. Ao invés desta teoria, e de outras do mesmo tipo, a teoria da titularidade não pretende alcançar qualquer resultado final específico. A justiça depende do que aconteceu no passado e não de qualquer resultado final que se pretenda atingir no futuro.
A teoria padronizada clássica, por sua vez, é aquela que diz que uma distribuição de bens materiais deve depender de qualquer qualidade pessoal, como por exemplo o mérito, ou a vida virtuosa. Ora, a teoria da titularidade não estabelece qualquer padrão a criar politicamente e, pelo contrário, considera que a imposição desses padrões distributivos conduz o estado a interferir indevidamente na liberdade dos cidadãos. A liberdade, diz Nozick, é contrária à imposição de padrões por parte do estado social, sejam quais forem esses padrões.
Na segunda parte do seu livro, Nozick dedica-se também a uma crítica especialmente circunstanciada da teoria rawlsiana, por vezes com argumentos que nos parecem excessivamente formais. No entanto, é bom de ver que a teoria da titularidade está realmente nos antípodas da teoria da justiça de Rawls e que, se partirmos desse pressuposto, a crítica de Nozick faz todo o sentido. Para Nozick, o distributivismo rawlsiano trata os mais favorecidos instrumentalmente, obrigando-os a contribuir para a melhoria da situação dos mais desfavorecidos. Ao fazê-lo, a teoria de Rawls acaba, segundo Nozick, por revelar o seu carácter teleológico e por não respeitar suficientemente os indivíduos e a sua autopropriedade. A justiça de Rawls e de todas as teorias distributivas, poder-se-ia dizer, é fundamentalmente injusta à luz da teoria da titularidade.
Gostaria ainda de deixar uma palavra breve sobre a terceira parte do livro de Nozick. Esta é também a parte mais curta, mas não deixa de merecer atenção. Nozick apresenta aqui o estado mínimo, como “um enquadramento para a utopia”. Por outras palavras: a concepção do estado mínimo defendida em Anarquia, Estado e Utopia não é uma visão de tipo perfeccionista que indique de que forma os indivíduos devem viver. Pelo contrário, trata-se de um enquadramento geral que permite aos indivíduos viverem vidas muito diferentes. Assim, por exemplo, se alguém pretende viver uma vida sob o signo do comunismo, ou da comunidade de bens, pode perfeitamente organizar-se para o fazer fundando uma “comuna” com aqueles com quem partilha essas ideias. Mas com a enorme vantagem de, ao contrário do que aconteceu nos países do “socialismo real”, não instrumentalizar a liberdade dos outros para esse mesmo fim.
O uso da palavra “utopia” nesta terceira parte do livro não é inocente. Esta palavra pertence à tradição da esquerda política, ou mesmo à tradição do pensamento socialista que Nozick tanto fustiga. Basta recordar que o inventor da palavra “utopia”, Thomas More, considerava que a base da sociedade ideal que ele próprio descreveu era a ausência da propriedade privada e do dinheiro. Ora, a abolição da propriedade privada seria para Nozick a maior das injustiças, na medida em que traduziria o desrespeito pelo indivíduo enquanto proprietário de si mesmo. Mas aquilo que Nozick quer sugerir nesta parte final do livro é que o libertarismo que defende também deve ser visto como uma utopia e, portanto, como capaz de inspirar todos aqueles que querem viver numa sociedade livre.
Procurámos resumir aqui o esqueleto da argumentação nozickiana nas três partes que compõem Anarquia, Estado e Utopia. Mas temos consciência que aquilo que dissemos não faz jus ao detalhe do raciocínio e ao virtuosismo intelectual que Nozick mostra ao longo de toda a obra e que só através da sua leitura directa pode ser apreendido. É também importante assinalar que algumas das passagens deste livro se tornaram, entretanto, referências obrigatórias da filosofia e do pensamento político contemporâneo. É exemplo disso a secção intitulada “A máquina de experiências”, no capítulo 3, que se tornou paradigmática na crítica ao utilitarismo. Outro exemplo é o chamado “argumento Wilt Chamberlain”, numa secção do capítulo 7 intitulada “Como a liberdade perturba os padrões”. Este argumento, que conta uma história imaginada sobre o jogador de basquetebol Wilt Chamberlain, tornou-se no exemplo paradigmático da argumentação libertarista contra o estado distributivo.
***
O pensamento de Nozick pode ser aproximado do de outros libertaristas contemporâneos mais conhecidos do público português, como são os casos de F. A. Hayek e Milton Friedman. Também eles defendem um individualismo estrito e criticam o estado social ou distributivo. No entanto, como refere Rui Fonseca no texto referenciado na bibliografia desta Introdução, devemos distinguir entre um libertarismo instrumental e um libertarismo fundamental. O daqueles autores, de formação sobretudo económica, pertence à primeira categoria. A sua defesa do libertarismo assenta em grande parte na defesa dos mecanismos de mercado livre e na ideia de que esses mecanismos são distorcidos pelas ideias de justiça distributiva e pela acção do estado social. No caso de Nozick, ao invés, o libertarismo é “fundamental” na medida em que assenta numa concepção moral da pessoa humana nos termos já referidos da autopropriedade. Para Nozick, o distributivismo do estado social equivale à quebra do imperativo categórico kantiano na fórmula do “fim em si”. Ou seja, o estado social trata os indivíduos — Nozick está a pensar sobretudo nos mais favorecidos — como um meio ao serviço de um determinado fim (a justiça como equidade, a maximização do bem-estar, ou outra coisa do género) e não como fins em si. Portanto, a sua justificação do libertarismo é filosoficamente mais robusta. Assenta em princípios morais e não apenas, ou primacialmente, em considerações sobre a eficiência dos mercados e a “ordem espontânea” da sociedade.
Em anos mais recentes, depois da publicação de Anarquia, Estado e Utopia, surgiu uma interessante corrente de renovação do pensamento libertarista a que se costuma chamar “libertarismo de esquerda”. Partindo das ideias de Nozick sobre a “propriedade de si” e recolhendo as análises críticas desta noção desenvolvidas pelo filósofo de Oxford G. A. Cohen, os libertaristas de esquerda, como Hillel Steiner e Michael Otsuka, recusam a ideia de que a autopropriedade legitime por si mesma a propriedade de recursos naturais. Daí preconizarem uma divisão igualitária desses recursos, ou a compensação que os proprietários devem aos não proprietários mediante impostos ou rendas sobre a propriedade de recursos naturais, incluindo a propriedade da terra. Embora a crítica dos “libertaristas de esquerda” me pareça adequada dentro da lógica interna do libertarismo, é evidente que o próprio Nozick recusaria este tipo de implicações igualitárias do seu pensamento. Mas a possibilidade de derivar, a partir de Nozick, desenvolvimentos teóricos que vão muito para além daquilo que ele próprio explicitamente defendeu, é também um sinal da vitalidade intelectual deste pensador e da obra agora traduzida para a língua portuguesa."
João Cardoso Rosas
Bibliografia
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Sobre Nozick
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Retirado do livro Anarquia, Estado e Utopia, de Robert Nozick (Lisboa: Edições 70, 2009)
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