'Só
sei que nada sei'
"Sócrates, o filósofo por
excelência
Sócrates é o grande marco da filosofia antiga . Não é
por acaso que chamam os filósofos anteriores ao seu pensamento de
'pré-socráticos'. Se pararmos para pensar, temos aqui algo interessante: muitos
desses filósofos foram contemporâneos de Sócrates. Então, por que chamá-los
'pré-socráticos', se eles não vieram antes de Sócrates? A resposta a ser dada é
que, aqui, não é tanto a cronologia que importa, mas o modo de conceber e fazer
filosofia.
Filosofia significa, etimologicamente, 'amor pela
sabedoria', ou 'amizade pela sabedoria'. Assim, a noção de sabedoria tem
crucial importância para sabermos o que é um filósofo. Antes de Sócrates, o
termo 'sabedoria' tinha várias acepções. A sabedoria podia ser um saber-fazer
técnico; um saber político, que era como os sofistas entendiam a sabedoria; um saber falar, saber convencer o outro,
ou seja, o domínio da linguagem retórica; um saber científico, que
englobava as ciências exatas , nascidas no século VI a. C; e as
especulações dos pré-socráticos.
Assim, como podemos perceber, a noção de sabedoria era
muito vaga. Não havia uma definição de filósofo. Esta surgiu apenas com Platão,
em seu diálogo 'O Banquete'. Nesse diálogo, a definição é dada com base em
Sócrates e em sua doutrina do não saber.
Essa doutrina, sistematizada na famosa sentença,
evidencia a visão socrática de que somos extramente ignorantes, embora não
saibamos disso. A história de Sócrates, que encontramos na 'Apologia de
Sócrates', diálogo platónico, conta que Querefonte, um de seus amigos,
perguntara ao oráculo de Delfos se existia alguém mais sábio que Sócrates. O oráculo
respondera que não. Abismado pela resposta, Sócrates passou passou a percorrer
Atenas, interrogando aqueles que, supostamente, detinham a sabedoria em seus
próprios ofícios. Interrogou homens de Estado, poetas, artesãos, para
descobrir alguém que fosse mais sábio que ele. No entanto, enquanto interrogava
essas pessoas, Sócrates descobriu que ninguém sabia tanto quanto aparentava ou
pensava saber. No fundo, suas opiniões eram todas mal fundamentadas, não
constituindo conhecimento, mas exatamente isto, apenas opiniões. Tendo
percebido isso, Sócrates conclui que é o mais sábio pois não pensa saber aquilo
que não sabe, diferentemente daqueles tidos por sábio em Atenas. É exatamente
isso que o oráculo quis dizer: Sócrates é o mais sábio dos homens, pois nada
sabe, mas, ao menos, tem consciência
do seu não saber.
Sócrates, então, toma como tarefa interrogar os outros
homens acerca de suas opiniões, para levá-los, também, a perceber sua própria
ignorância. Para isso, Sócrates age como quem nada sabe, isto é, com
ingenuidade. Ele interroga seus ouvintes candidamente, com ignorância
dissimulada, aparentemente interessado em 'aprender a verdade dos que a
conhecem'. É a famosa ironia de Sócrates. Esse método dialético é conhecido
como 'maiêutica'.
Por isso, Sócrates nunca afirmava nada, apenas
perguntava. Com suas perguntas, ia expondo, um a um, os erros do raciocínio de
seus ouvintes, e mostrando a eles que suas opiniões não eram tão corretas
quanto pensavam. Isso, é claro, trouxe a Sócrates algumas inimizades de homens
arrogantes e poderosos que se sentiram incomodados com aquele homem que os
fazia cair em contradição na praça pública de Atenas. Sócrates foi forçado a
tomar cicuta, e, assim, morreu um dos maiores nomes da filosofia.
Por que Sócrates é tão importante? Ele não deixou nada
escrito. Sua atividade filosófica resumiu-se a interrogar outras pessoas,
mostrando a elas que elas estavam enganadas em suas convicções. Qual a grande
contribuição de Sócrates para a filosofia? Mostrar que não sabemos tanto quanto
pensamos? Existem céticos mais radicais do que ele, e estes céticos não
obtiveram tanto crédito assim. A importância de Sócrates está no que sua tese
implicou.
Ao usar como método de filosofar a maiêutica, Sócrates
destacou dois pontos de sua filosofia: um, que o saber deve ser atingido pelo
próprio indivíduo que o procura, não podendo ser ensinado. A filosofia é uma
busca pelo saber que parte do indivíduo, e só ele pode chegar até ela. O
verdadeiro saber não se ensina. E esse verdadeiro saber deixa de ser um saber
técnico, retórico ou político, passando ser um saber de si mesmo e dos valores
que se deve seguir. A preocupação de Sócrates é mais moral do que técnica,
retórica, científica.
O segundo ponto destacado é que o primeiro saber que
devemos adquirir é a consciência do não saber. Sócrates não negou a
possibilidade de alcançar a sabedoria. Ele próprio buscou a sabedoria por toda
a sua vida. Mas, antes disso, ele pensava ser necessário perceber que nada
sabemos. Deveríamos voltar-nos para nós mesmos, tomarmos consciência de nós
mesmos, para chegar ao saber.
Platão levou isso muito a sério. Ele usou a doutrina
de Sócrates para definir o filósofo'. O filósofo é, assim, aquele que nada
sabe, mas que tem consciência de seu não saber. E, além disso, filosofar não é
mais uma atividade como a pensavam os pré-socráticos e sofistas do século V.
Filosofar torna-se um pôr a si mesmo em questão.
Filosofar torna-se um perceber que não se é o que deveria ser, que não se sabe
o que realmente se deve saber. Filosofar torna-se, enfim, um desejar saber, um
desejar conhecer a sabedoria. É com o 'Banquete' de Platão que a filosofia toma
forma, finalmente, e temos a primeira definição do filósofo. E o 'Banquete' de
Platão é uma homenagem a Sócrates, onde Sócrates é o exemplo do filósofo
verdadeiro. Assim, a história da filosofia mostra que Sócrates foi o primeiro
homem a 'amar a sabedoria', do modo como a sabedoria passou a ser vista, a
partir de Platão. Por isso, temos, na filosofia, o 'antes de Sócrates' e o
'depois de Sócrates'.
É difícil falar de Sócrates, por dois motivos simples:
o primeiro é que não temos muitos registos históricos de sua vida. Ele
foi imortalizado, principalmente, nos diálogos platónicos, e, ali, o
Sócrates-personagem se confunde com o Sócrates-histórico e com a opinião de
Platão. O segundo motivo é que a influência de Sócrates é tão grande, e há
tanto a ser dito acerca do pouco que sabemos sobre ele, que é inevitável deixar
algo de fora. E, pior, algo que merece ser mencionado. No entanto, fiz o possível
para apresentar os pontos cruciais dessa tese socrática do 'não saber'."